sexta-feira, novembro 09, 2007

Diário

Ó meu grande amor,
mando notícias de tristezas:
as pessoas andam se explodindo,
e parece que virou moda.
Cada dia é um que ganha o noticiário mais importante do país. E fico com medo. Já se vão quase 3 anos que não nos falamos. Por que? seria meu questionamento... as pessoas se explodem e a qualquer hora pode ser eu um desses estilhaços da perfumaria atômica; as pessoas lá de casa enlouqueceram, quero dizer: o resto daquelas que sobraram. Esta é a décima enésima carta que te escrevo; os correios foram sabotados pela ocupação e já faz tempo que não sei seu endereço. Internet só tem acesso os desgovernados do governo. Ontem teve cerimônia aqui na rua, caiu uma bomba na antiga casa de Ashraf. Sinto que estou ficando burro.

Fizemos um pacto na família, pode parecer estranho... não se faz mais amor entre os férteis, a gente não transa mais; que é pra não ter filhos. Mas meu filho está divido entre nossos corpos. Ah.

A cada clarão na cidade eu sinto que pode ser você, aí corro lá pra baixo e releio alguns escritos seus. Nessa confusão toda eu perdi sua única foto. Me dá pavor pensar que você pode sumir como fumaça memória. Sinto que estou ficando burro.
A mãe prostada num canto lendo aquele livro antigo... perguntei a ela pra que tanta dor e ela olhou pra mim paralisada. "Mãe", eu disse, "ter filhos dói"?
Mas a coitada tá louca.

A casa anda que é puro pó; e nem adianta limpeza. O pouco que sobrou da gente tenta se distrair ao longo longo longo longo do dia. O melhor é quando o corpo não suporta e dorme, mas é raro.
Tenho uma esperança: no dia em que for a nossa casa a que irá para os ares, todas minhas cartas cairão sobre a cidade. Se por aqui estiveres, ah!, se lembrará de mim. Mas se não, dois estilhaços irão se juntar e explodir em amor lá no céu. Amor, céu... Sinto que estou ficando burro.

Aqui é o centro de tudo e tudo está tão longe daqui.
Ó meu grande amor, quero escrever um livro de alegrias.

5 comentários:

Walmir disse...

adorei este romântico escrever, este platonismo em disfarces que não enganam: amor é falta, apesar de todas as intromissões de tantos Spinozas.
Paz e bom humor

Odradek disse...

Além do texto ser lindo, identifico com essa situação.Mas, de um modo diferente.No texto, a guerra aparece é uma epifania subjetivada, um avatar da forma poética do narrador viver...Para mim ela é salvação no sentido de que nos objetiva, nos iguala, na morte. O que me interessa é o aspecto massificante do caos, que achata o ser humano na condição de humana a despeito de toda vaidade e individualidade...Por isso é intrigante para mim, pensar sob essa ótica...Diferente.E só aumenta a curiosidade a respeito do autor.... Um abraço, sua manifestação é linda.

Arnaldo Sobrinho disse...

Acho que esse texto é uma hecatombe poética. Ando meio assim, num estado de querer chuvas de cartas de amor caindo do céu. Veremos no que vai dar. Beijo.

Adélia Nicolete disse...

Ei, Assis. Valeu.
Sempre que abro o jornal e vejo alguma foto dessas guerras pelo mundo - longe e perto - fico pensando que deveria escrever alguma coisa. Me indignar poeticamente na escrita e nao só naquele momentinho/pensamento antes de virar a página...
Voce fez isso. Traduziu e registrou. Fez diferença.
Já eu... Vou tentar seguir seu exemplo.
Bisu.

Anônimo disse...

Maravilhoso! Triste também. Situações absurdas. Muita coisa tem caído do céu para mim nesses últimos dias. Hehehe.
Abração. Depois você tem que ler o que tenho escrito...